Equipa responsável:
Ariano Suassuna (1927-2014)
ensaio da entrevista no château (11-12-2014) |
Ariano
Suassuna, da advocacia à literatura
Beatriz:
Olá Ariano Suassuna! Somos
alunas da Secção Portuguesa do Liceu Internacional de Saint-Germain-en-Laye e
viemos ao Brasil entrevistá-lo. A nossa turma vai levar à cena o seu Auto da Compadecida no dia 30 de
janeiro de 2015. Depois de Gil Vicente, os alunos do 10º ano deste ano quiseram
mostrar ao público da Secção uma obra do século XX brasileiro que tem nítidas
influências do teatro português da época dos Descobrimentos.
Marina:
Passaram quinhentos anos e
as culturas portuguesa e brasileira continuam a dialogar e a influenciar-se
mutuamente. Por isso quisemos entrevistar um dos maiores escritores brasileiros.
Gostaríamos de saber um pouco mais sobre o senhor. Pode ser?
Ariano Suassuna:
Obrigado! Eu estou honrado
por terem escolhido a minha obra. Bom, pra começar eu tenho 87 anos, a tarefa de
viver é dura, mas fascinante. A minha história começa no dia 16 de junho de 1927. Meu
pai era o governador do Paraíba, por isso eu nasci no Palácio do governo. No
ano seguinte, minha família se mudou para o sertão. Quando eu tinha apenas 3
anos, meu pai foi assassinado no Rio de Janeiro por motivos políticos. Eu
comecei a estudar Direito na faculdade de Recife, em 1946. Me formei em 1950,
mas em 1956 eu desisti de ser advogado e me tornei escritor. Minha primeira
peça se intitula Uma Mulher Vestida de Sol. Em 1957, eu me casei com o amor da minha
vida, a Zélia. Tivemos 6 filhos e 13 netos.
Beatriz:
O senhor
abandonou a advocacia, em 1956. Por que é que tomou essa decisão?
Ariano Suassuna:
Eu estudei Direito por falta
de opção, eu não tinha vocação. No meu tempo, só havia três opções: Engenharia,
Medicina e Direito. Quem não dava pra nada, ia estudar Direito. Era o meu caso.
Fui advogado durante quatro anos. Odiava ser advogado!
Marina:
O senhor criou um Brasil nos seus livros. Qual a diferença entre o Brasil dos seus livros e a realidade?
Ariano Suassuna:
Eu escrevo o Brasil da
maneira que queria que fosse. Se as pessoas que não são patriotas acabarem com
ele, os leitores poderão ver em meus livros o potencial que o Brasil tinha.
Beatriz:
Pode dizer-nos
algo sobre a sua primeira peça de teatro?
Ariano Suassuna:
A primeira peça de teatro que eu escrevi foi Uma mulher
vestida de sol, em 1947. A peça tem traços da religião cristã.
Marina:
Como é que nasceu o Ariano Suassuna - escritor?
Ariano Suassuna:
Desde jovem tive acesso à
Biblioteca que meu pai criou, lia títulos como Os três mosqueteiros. Meus
dois tios maternos eram também literários, eles me ajudaram a conhecer Eça de
Queiroz e Euclides da Cunha.
Ariano
Suassuna e o Auto da Compadecida
Beatriz:
O senhor pode falar-nos
um pouco sobre o seu processo de criação? Como é que escreve?
Ariano Suassuna:
Eu escrevo tudo à mão, é
meio desumano escrever no computador. A literatura é vocação, missão, criação e
festa. O ato de escrever é muito trabalhoso e dá muita alegria. Eu escrevo uma
primeira versão manuscrita, em papel pautado. Depois escrevo à máquina a segunda
versão e depois ainda uma terceira versão manuscrita, mais elaborada, já com os
desenhos, ilustrações que eu mesmo faço. E há por fim uma quarta versão com
tinta nanquim com as letras desenhadas. Trabalhoso, mas indispensável. Sem a
literatura eu não saberia viver. Eu demoro muito para escrever: levei 12 anos para escrever a Pedra do
Reino.
Marina:
Publicou O Auto da Compadecida
em 1955. Em que se baseou para escrever essa peça?
Ariano Suassuna:
Para escrever O Auto da
Compadecida me baseei em três folhetos de cordel[1],
cada um deles me inspirou num ato.
Beatriz:
É então por isso
que se fala da influência da literatura de cordel nesta sua obra?
Ariano Suassuna:
Sim, a minha obra tem
influências do cordel e também nos autos da Idade Média. Vocês conhecem Gil
Vicente, né? Pois os autos moralizantes desse dramaturgo português também me
influenciaram…
Marina:
Mas voltemos ao cordel. O
folheto «O Dinheiro ou O Testamento do
Cachorro», de Leandro Barros Gomes influenciou o primeiro ato, não foi?
Ariano Suassuna:
Foi sim. Nele aparecem as
figuras do padre e do bispo, e também a ideia de uma quantia monetária que será
entregue à Igreja para que se realize o enterro de um cachorro. Na minha peça, o animal pertence à mulher do
padeiro, patroa de João Grilo e Chicó, que arrumam grande confusão ao oferecer
aos sacerdotes da Igreja dinheiro que não lhes pertencia, vindo de um
testamento que não existia. A história
do testamento do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é um conto
popular de origem moura.
Beatriz:
E o segundo ato é baseado
num romance popular, anônimo que conta a história de um cavalo que cagava dinheiro…
Ariano Suassuna:
«O cavalo que defecava
dinheiro» é o título exato. Como era impossível colocar um cavalo em cena,
então, eu mudei ele por um gato.
Marina:
E o último ato baseou-se no folheto
«O castigo da soberba», também anônimo, cantado pelos sertões. Aqui, o cenário
do seu auto muda.
Ariano Suassuna:
É, ele muda sim. Tudo se passa
no interior de uma igreja onde ocorre um julgamento: as personagens mortas são
os réus, Manuel – o próprio Cristo – é o Juiz, e o Encourado – uma representação
nordestina do diabo como um vaqueiro – representa o promotor. Feitas as
acusações contra os pecadores, Grilo apela à Compadecida – Virgem Maria – como
advogada da Misericórdia, que intercederá por eles. E o faz através de um verso
popular, de um cantador conhecido como Canário Pardo.
Beatriz:
Pode
explicar-nos como é que criou os personagens?
Ariano Suassuna:
Meus personagens ora são recriações
de personagens populares e de folhetos de cordel, ora são familiares, ou mesmo
pessoas que conheci. No Auto da Compadecida, temos tipos de personagens
nordestinos, e também temos o tipo bem brasileiro que se limita a "dar
conta do recado"
Marina:
A dar conta do
recado?
Ariano Suassuna:
Sim, estou a me referir ao
famoso "jeitinho" brasileiro que tão bem nos caracteriza aqui no
Brasil. Esse jeitinho está bem visível no meu auto.
Beatriz:
Fale-nos da personagem do
Palhaço.
Ariano Suassuna:
O Palhaço é o narrador
onisciente da peça. Inspei-me no palhaço Gregório que marcou a minha infância,
em Taperoá.
Marina:
O João Grilo e Chicó são
herdeiros de dois personagens da Commedia dell´arte: Pierrô e Arlequim. E são
herdeiros do palhaço besta e o palhaço sabido, não é?
Beatriz:
Apesar de tomarem atitudes
“erradas”, sempre acabam por levar ao desfecho esperado dentro da concepção de
que a comédia deve ter um final feliz.
Ariano Suassuna:
João Grilo é o típico
nordestino amarelo, que tenta sobreviver no sertão de forma imaginosa. Costumo
dizer que a astúcia é a coragem do pobre. Já o Chicó foi baseado em um mentiroso
que vivia em Taperoá. Chicó é visto como uma pessoa sem confiança porque mente,
inventa histórias nas quais é difícil de acreditar. É lógico que se tem de
associar o contar história de Chicó com o costume popular nordestino.
Marina:
E o Severino representa
mesmo um personagem do Cordel?
Ariano Suassuna:
Sim! Severino é um cangaceiro
injustiçado que só rouba e mata para sobreviver, ele mesmo não gosta de
mulheres desonestas.
Beatriz:
O Major
identifica uma característica social típica do Nordeste, não é?
Ariano Suassuna:
Sim, claro. No Nordeste o título
de major, ou coronel, é uma forma popular utilizada para fazer referência a uma
pessoa poderosa.
Marina:
Explique-nos a
presença de Jesus, da Compadecida e do Diabo na sua peça.
Ariano Suassuna:
Esses três são do “Castigo
da Soberba”, e todos fazem parte do ciclo religioso da Literatura de Cordel.
Beatriz:
Identifica-se
com algum desses personagens que criou?
Ariano Suassuna (risos):
Bom, sempre me identificam
com o João Grilo por ser esperto. Eu queria muito me parecer com o João Grilo, mas
para ser honesto, me identifico mais com o Chicó, por ser bobo. Eu não tenho
astúcia nenhuma, sou um ingênuo.
Marina:
A tradição ou se preferir a
história bíblica sugere que Jesus era branco. Por que é que Jesus aparece como
negro nesta peça? Quer provocar a Igreja?
Ariano Suassuna:
O personagem Jesus foi feito
para corrigir certos preconceitos de raça que acontecem pelo mundo e inclusive
da parte de João Grilo. Vocês lembram do «ridendo
castigat mores» de Gil Vicente? Então, pois é, eu segui o exemplo do fundador do teatro
português onde se criticava para corrigir. Eu tinha de tentar corrigir o
racismo!!!! Faz algum jeito haver gente que se considera superior por causa da
cor da pele? De jeito maneira! Eu recuso!!!
Beatriz:
O senhor foi
considerado herege quando escreveu a obra…
Ariano Suassuna:
Fui sim, mas eu tenho a
dizer que sou católico e escrevi realmente com consideração pela Igreja. O Auto
da Compadecida não é contra a Igreja, mas contra os seus representantes
ruins que atrapalham a Igreja. Eu me preocupo com a Igreja! Vocês sabem que a
peça foi um sucesso, né?
Beatriz & Marina:
Sim, foi um sucesso e????
Ariano Suassuna:
Foi um sucesso porque se calhar as pessoas perceberam
onde eu queria chegar. A minha obra até foi adaptada ao cinema… Essas coisas
não acontecem por acaso, né?
Marina:
Parece-lhe possível que a sua peça procura intervir
socialmente?
Ariano Suassuna:
Sim, claro! Eu sempre quis
mostrar a realidade da época em que vivi, criticando os problemas sociais como
a falta de virtudes, a preocupação com a aparência e o dinheiro. Também nunca
gostei que a ação do clero discriminasse as pessoas por causa da sua origem
social.
Beatriz:
Curioso… Como advogado podia
ter defendido pessoas, mas disse-nos que deixou a advocacia por falta de vocação.
Já reparou que nesta sua peça defende a nossa sociedade de toda uma série de
comportamentos corruptos? Afinal não abandonou verdadeiramente a advocacia… (Ariano Suassuna sorri, grande plano da
câmara nele)
Marina:
E com esta constatação nos
despedimos. Obrigada, Ariano Suassuna, escritor-advogado, por ter alertado a
sociedade para estes problemas!
[1] Literatura de cordel também
conhecida no Brasil como folheto, é um gênero literário popular escrito frequentemente na forma rimada, originado em relatos orais
e depois impresso em folhetos. Remonta ao
século XVI, quando o Renascimento popularizou a impressão de relatos orais, e mantém-se uma forma literária popular no Brasil. O nome tem origem na forma como tradicionalmente os folhetos eram
expostos para venda, pendurados em cordas, cordéis ou barbantes em Portugal. No Nordeste do Brasil o nome foi herdado, mas a tradição do barbante
não se perpetuou: o folheto brasileiro pode ou não estar exposto em barbantes.
Alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, também usadas nas capas. As estrofes mais comuns são as de dez, oito ou
seis versos. Os autores, ou cordelistas, recitam esses versos de forma
melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, como também fazem leituras ou
declamações muito empolgadas e animadas para conquistar os possíveis
compradores. Para reunir os expoentes deste gênero literário típico do Brasil,
foi fundada em 1988 a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, com sede no Rio de Janeiro. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_de_cordel,
consultado a 17-12-2014.
***
Alunas-entrevistadoras |
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